- Minha vida é um tédio, dissera a jovem, lá pela casa dos 30.
- Tédio ? Por quê ? O que quer dizer com isso ?
- Ah, me formei, parei de estudar, tenho um emprego chato, ganho pouco, fico muito em casa, vou à igreja sem entusiasmo e ... O rosário de insatisfações não tinha fim.
- O que você lê, o que vê, o que ouve, por onde anda e passeia ?, perguntei, curioso.
- Ah, gosto de ficar em casa, ouço alguns sertanejos, vejo a das oito e a Oprah, leio, leio ... quase nada.
- Caramba! Casou ?
- Nunca casei, poucos namoros.
- Talvez um tédio a menos.
- Que horror! Ela começara a animar, com um leve sorrizinho no canto dos lábios.
- Brincadeirinha verdadeira (quase sempre, pensei).
- O que faço ? Tenho saída ? Vou me deprimir em breve ?
- Por que diz isso ?
- Minha tia, igualzinha, só que mais velha e muito triste, sem graça alguma. E minha mãe ... É genético ? É sina ?
- Tem uns cem reais sobrando aí ?
- Tenho cartão de crédito. Por quê ? Vai me cobrar ?
- Que é isso, menina! Você tem doença nos olhos.
- Que é isso, pastor, quando quero enxergo até o que não devo. Não uso óculos pra nada.
- Doente dos olhos, declaro em nome de Jesus. Onde estudou ?
- No Dante.
- Não é possível!
- Por quê ?
- Deixa pra lá. Então, topa umas dicas ? Promete aplicá-las ?
- Claro, tudo para me livrar do tédio. Mas que história é essa de doença nos olhos ? O senhor também é médico ?
- De certo modo! Você vê pouco, enxerga pouco, seus olhos não são porta de entrada para a imaginação, você ainda não ganhou o mundo, menina. Seus olhos serão a sua salvação.
- Quê ? (Onde fui me meter. Pastor maluco!)
- Então, com os cem reais, passa lá na livraria e compre dois livros: 200 crônicas escolhidas, de Rubem Braga e Av. Paulista, de João Pereira Coutinho. O primeiro, um brasileiro que enxergou muito da vida; o segundo, um português da melhor cepa literária.
- C o quê ?
- Tá vendo, tai um tiquinho da sua doença.
- Não estou entendendo. Dois livros ? São grossos ?
- Calma, menina. Xô, tédio, tá amarrado, em nome de Jesus.
- Que é isso ?
- Nada, brincadeirinha. Quem vai começar a libertar você para a vida são esses dois livros.
- E a Bíblia ?
- No seu caso, vem depois, ok ?
- Faça o teste. Lá na livraria, leia, de cada livro, apenas a primeira crônica. Se você não gostar, não se encantar, deixa pra lá, talvez seu caso seja remédio, tarja preta.
- Que horror!
- Nem tanto. Acostuma e melhora. A ciência é uma bênção.
- Pastor de antigamente fazia oração, mostrava versículo, tinha misericórdia. Desculpe-me, estou sendo sincera.
- Sim, fazemos oração, lemos versículos, mas eu quero libertá-la, você entenderá depois.
- Que Deus me ajude!
- Já ajudou, está aqui. Moça volte depois de conhecer o Rubem e o João. Ok ? Vou fazer uma oração.
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